setembro 05, 2007


Arigatô, otô-san!

De tanto ver, pesquisar e ler sobre imigração japonesa, voltou o comichão de escrever sobre meu pai. E acho que vou fazer isso, sim. Por que o velho não pode ser uma das 100 histórias que o JT vai publicar? E ainda pode render um trocado pra filha caçula, tão necessitada...

Minha idéia é abrir a matéria com um trecho de um texto que o Júlio escreveu pouco depois da morte do pai e publicada em junho de 1990 no Jornal Paulista. Na época, um dos editores do jornal era o William Kimura que nos contou que houve interesse de se publicar o texto traduzido no Japão. Não deu: as palavras, na tradução, perdiam a força. Eu, de minha parte, considero esta a homenagem mais bonita que poderia ser feita ao velho Isamu.

Como o recorte com a matéria já está completamente amarela e ameaça se desfazer, vou copiar pra deixar guardado aqui, neste blog. E para meus filhos lerem e guardarem – nem sei se eles já conhecem... E, um dia, contarem para os filhos a história desse homem tão especial para o mundo e muito querido para mim: meu pai.

Ele era quatro em um: Isamu, Kosugui, Jorge e Dita. Nasceu Isamu, num agosto dos anos 20, pertinho do Monte Fujii. Único filho homem duma prole de meia dúzia, imigrou para o Brasil na juventude. Aqui, virou Jorge para os vizinhos e amigos não tão chegados.

Antes, porém, foi Kosugui. Um nome “artístico”. Nos anos 30 e 40, aquele jovem de corpo miúdo não se afeiçoou muito ao trabalho na lavoura. Preferiu algo mais leve em termos de esforço físico e muito mais divertido para quem tinha um espírito sempre alegre. Ingressou num grupo mambembe que percorria o interior de São Paulo promovendo exibições de fitas japonesas. Eram todos jovens e cada um ganhou um apelido. Isamu virou Kosugui. Seu trabalho principal era dublagem e sonoplastia. Imitava gato, fazia barulho de chuva, era vendo. Chorava, ria.

No Interior, numa zona agrícola, conheceu a moça Hatsue, imigrante igual, com quem se casou e mudou para São Paulo. Aqui, ele virou Jorge. Isamu, pouca gente sabia pronunciar. Kosugui era mais difícil ainda de guardar na memória.

Seu destino, é claro, foi ser tintureiro. Criou fama no Itaim-Bibi e no Paraíso. Tinha um truque especial para remover manchas. E três filhas para fazer a entrega de porta em porta, o que, para elas, era até divertido. Apesar de que uma preferia mesmo era bater bola com os meninos da rua Chuí.

E já estamos nos anos 50, 60, sem mais aquelas lembranças amargas dos anos de guerra. Nessa altura, homem maduro, Jorge tinha um dia por semana em que voltava a ser Kosugui, o brincalhão. Toda segunda-feira, sob o olhar aborrecido da esposa, lá ia ele pelos bares com os velhos amigos da velha profissão. Bebia, conversava, apostava nos cavalos. Uma vez ganhou um páreo fenomenal e não teve dúvidas: uma de suas filhas foi batizada com o nome da égua que lhe sustentou algumas daquelas noitadas com os amigos.

Parou com esses excessos, aos poucos, quando começaram a nascer os netos, época em vira “Ditiã”. O que significa avô, em japonês. E a alegria semanal, agora, era as pescarias às margens da represa Billings. Certo domingo, indo pescar, na estrada velha, o carro do amigo se acidentou. O amigo nada sofreu, mas ele foi parar no HC, teve de andar bom tempo em cadeira de rodas e compulsoriamente fechou a tinturaria. O sustento da casa ficou, então, inteiramente por conta de Hatsue, ou simplesmente Fofinha para os cinco netos.

Apesar de tudo Isamu/Jorge/Ditiã continuou o divertido Kosugui. Gostava de promover feijoadas (sim, feijoadas) em sua casa na Vila Carrão, para curtir o sorriso e as brincadeiras de amigos e parentes. Fazia um caldeirão enorme (no início, um latão mesmo) para todo mundo comer e ainda levar um pouquinho para casa. Nessas ocasiões, o quintal de sua casa era quebrado, para que ele pudesse preparar a feijoada ao ar livre, sobre uma fogueira feita diretamente na terra.

Nas épocas apropriadas, naqueles meses de vento, ele era também o fabricante de pipas para os meninos do bairro. Cobrava dos garotos apenas o preço do material, pois seu gosto era ter o que fazer, e, especialmente, olhar para o céu e ver seus pequenos papagaios voando.

Bem, é preciso agora que alguém diga aos moleques da Vila Carrão que esse homem não se encontra mais entre nós. Ele até que lutou – como sempre lutou – para superar mais aquele obstáculo que a princípio pareceu a todos uma gripe mais forte. Mas o pulmão não lutou junto e deixou a pneumonia tomar conta de tudo. Ele faleceu há poucos dias, mas deixou espalhado por aí o espírito aventureiro de Isamu, a força de luta de Jorge, a alegria de Kosugui e o amor do Ditiã. Não é mais quatro em um, mas um em muitos de nós.

Algumas correções se fazem necessárias: meu pai conheceu a moça Hatsue, minha mãe, quando ambos moravam em São Paulo e ele foi trabalhar na tinturaria de meu avô. E o grupo mambembe apresentava peças de teatro japonês - ele fazia sonosplatia, mas não no cinema...

Existem mais detalhes, mas o essencial está aí.

Arigatô, otô-san!!!