setembro 26, 2002

Felicidade é olhar o saldo no banco pela internet e descobrir que o negativo está bem baixinho. Nem digo estar positivo, porque isso já é sonhar alto demais. Mas quando isso acontecer – juro – vou printar a página e colocar num quadro para lembrar como é.

Mas se isso é felicidade pra mim, para o tal vietnamita que foi encontrado perdido no mar felicidade é justamente poder velejar de um lado a outro do oceano. E essa felicidade ele perdeu, pelo menos por enquanto. O barquinho dele, um veleiro que não passava de oito metros, teve de ser afundado porque não tinha mais condições de navegação. Imagino a tristeza dele quando concordou em afundar o Sea Breeze. Mas homem do mar conhece as limitações e não insiste no perdido. Afundou, perdeu, mas cumpriu valorosamente o destino...

Essa história me impressionou muito e, mais uma vez, recolhi tudo o que encontrei nos telegramas internacionais. Richard van Pham, esse é o nome do vietnamita naturalizado americano, de 62 anos. Herói solitário, ficou vagando perdido no mar por mais de três meses. Morava no barco e tinha Long Beach como base. Saía vez ou outra para passeios longos. Um completo homem do mar, conforme a descrição do Josep Pla, de quem já falei antes.

Como todo lobo do mar, um sujeito solitário e calado. Não tinha família e a tripulação do barco que o recolheu não conseguiu saber o que fazia para viver antes de se refugiar nos Estados Unidos, em 1976. Ninguém deu pela falta dele, ninguém comunicou o desaparecimento. Em 26 anos de terras americanas, o velhinho não arrumou uma única alma que lhe fizesse companhia ou que pudesse sentir falta dele.

Claro que isso vai virar filme. Se bem que vai ser difícil fazer essa história render o tempo necessário para um longa metragem. Pelo menos, não com as informações divulgadas. Pode-se criar um passado para ele. Como é filme americano, ele pode virar um espião americano no Vietnã, procurado pela polícia do país dele, daí a necessidade de isolamento. Se foi para os EUA no final dos anos 70, certamente deve ter vivido a guerra. De que lado? Sabe-se lá... O velhinho não fala.

Nos telegramas todos que recolhi – cinco páginas impressas de texto em inglês e espanhol -, a maioria das aspas (é como a gente chama as declarações reproduzidas em texto) são do pessoal da fragata que o recolheu. Dele, uma ou duas frases. "Se você viaja pelo mar, pega o que ele lhe oferece. Se tem medo, morre".

"Não via nada. De repente, num dia, apareceu um avião. O piloto balançou as asas como uma saudação. Duas horas depois, apareceu um navio. Estou muito, muito feliz". Assim o vietnamita descreveu o próprio resgate. Declarou, também, amor às pessoas que o resgataram: "As pessoas daquele navio são como minha família. Eles me trataram como a um irmão".

E, pelo jeito, nada mais disse. Agora, voltou ao anonimato. Ninguém disse para onde ele foi levado, depois de dispensado pelo Serviço de Imigração. Acho que perguntaram a ele, mas ele não respondeu. Voltou ao isolamento e à solidão, certamente.

Mas porque cargas d'água uma pessoa faz questão de ficar sozinha?
Isso, pra mim, é um mistério. Por mais complicadas que sejam as relações humanas, não dá pra ficar sem ouvir outra voz, sem convresar, sem se relacionar. Sem ter alguém pra, de vez em quando, ouvir nossas lamentações e dividir as alegrias.

Que tipo de medo ou de desilusão faz alguém simplesmente desistir de ter amigos? O que pode acontecer com alguém para, simplesmente, desligar o social?

Não sei, não consigo imaginar. E rezo pra que isso nunca me aconteça...

setembro 25, 2002

Quem não sabe o que vai fazer quando ganhar na Mega-sena? Acho que todo mundo já se pegou imaginando como vai ser quando botar a mão numa bolada, coisa de uns dez milhões, mais ou menos. Acho que 100% das pessoas que conheço pensam em botar o pé na estrada e sair pelo mundo. Estrada, aqui, bem entendida mais como caminhos aéreos e marítimos do que propriamente de terra. Mesmo porque o mundo fica muito complicado pra ser visto de carro.

Corro o risco de não ser original. Eu também botava o pé no mundo. Mas, antes, deixava iniciado aqui o meu sonho de consumo. Ou melhor, o meu sonho de fazer os outros consumirem. Deixava alguém aqui construindo pra mim um shopping. Não um shopping comum, desses fechados, com abóbodas de vidro e vitrais grandiosos, nem com colunas gregas na entrada (cafona, sim, mas não vamos exagerar, né?).

Sabe o Ghirardelli, de San Francisco? Pois, mais ou menos assim. Aberto, com áreas ajardinadas e bancos em vários níveis. No centro, uma pracinha. Chiquitita, pero cumplidora. Alguns cafés com a filosofia dos cafés de Buenos Aires. Você vai, senta, pede um café ou seja lá o que quiser beber ou comer e fica lá o tempo que quiser, sem nenhum garçon imbecil lhe apresentando a conta e sugerindo que você dê lugar para outras pessoas. Claro, as mesinhas ficariam em alguns patamares estratégicos, debruçados sobre a praça. Uma livraria, aqui seria de bom tom. Afinal, é gostoso ler num lugar assim.

Uma escada ampla, de tijolo aparente e corrimão de ferro, levaria para as lojas. Estas, ficariam meio empilhadas no fundo da praça, todas saindo para um corredor de onde se avista a praça. Lojinhas pequenas, de produtos diferenciados, bonitos. Uma floricultura enfeitaria bem o primeiro andar, com as flores expostas na grade do corredor. Claro, não caberiam muitas lojas. Digamos, umas cinco por andar, em cerca de três andares. Mais do que isso as pernas não aguentam, embora a gente possa pensar num elevador para os sem-fôlego, os de mais idades e os de todas as anteriores.

Como o espaço ficaria aberto 24 horas, seria bom ter serviços de conveniência. Uma pequena padaria, mais uma boulangerie do que as nossas manjadas padarias. Uma lojinha de presentes, com objetos bonitos e originais. Outra de chocolates – poderia até ser uma Kopenhagen, mas eu preferiria mesmo uma Neuhaus. Vai, sem sonhar tão alto, serve uma de chocolates Gramado mesmo. Uma sorveteria, porque em dias de sol e calor – é o que mais temos tido ultimamente – seria o ponto de atração do lugar.

Quem se habilitasse a ter um estabelecimento ali teria de se comprometer a só contratar gente sorridente e bem-humorada. Nem precisa ser bonito – só um sorriso no rosto já deixa a pessoa bonita. E todo mundo trabalharia em turnos de seis horas, porque mais do que isso não há saco ou humor que agüente.

Quanto eu ganharia com isso? Não tenho a menor idéia. Mas eu ganhei na Mega-sena, lembra? Então essa não seria uma grande preocupação. O que eu queria, na verdade, é alguma coisa que não existe aqui em São Paulo. Um lugar gostoso, agradável, aberto, onde se possa ficar à-toa fumando um cigarro sem se preocupar em estar poluindo um ambiente fechado. Onde o tempo passe sem que se perceba. Onde dá pra relaxar lendo, tomando alguma coisa ou simplesmente vendo a fauna local desfilar. Tem de ser 24 horas porque eu sei o desespero que é encontrar um lugar pra ir depois da meia-noite nesta cidade sem ser esses lugares de música terrível bombardeando os ouvidos. Depois da meia-noite, só se for na casa de alguém que não tenha um vizinho chato que vai reclamar se a conversa estiver muito divertida e todo mundo estiver rindo. E olhe que nem toquei no tema da música.

Isso acho que vou dispensar no meu espaço. Quem quiser ter música, que leve a sua num disc-man ou assemelhado. Música de elevador, nem pensar. E gosto musical é subjetivo, não dá pra contentar gregos e troianos. Mas, claro, vai ter loja de CDs. Que pode até alugar disc-man com os CDs preferidos de cada um.

Bom, trata-se de um sonho. E resolvi contar assim porque, de repente, aparece alguém achando a idéia ótima e resolve levar adiante. Porque, na verdade, o lugar não precisa ser meu. Ele só precisa existir. Se é viável, se é lucrativo, isso deixo para os analistas e pentelhos de plantão decidirem. Para mim, seria o lugar.

Tenho outras idéias, ainda. Mas agora vai começar Smallville e eu tenho de correr pra publicar esse texto....

setembro 23, 2002

Estava na abertura de uma matéria do New York Times: “Não se preocupe se tiver a incômoda sensação de estar sendo esmagado. Você não está sozinho.”

Ufa, que alívio! Porque ser esmagado realmente é uma sensação boa de ser dividida com o máximo possível de pessoas. E é um baita consolo saber que tem mais gente sentindo a mesma coisa. Dentre as trocentas coisas solidárias que circulam por aí, eis que aparece mais uma: a sensação de esmagamento.

As formigas, com certeza, devem conhecer muito bem essa sensação, embora não existam muitas vivas para dar um depoimento e nem muita gente com domínio suficiente de formiguês pra poder entrevistá-las...

De qualquer forma, é bom explicar que a matéria em questão se referia ao perigo de guerra que anda atormentando a vida dos americanos, por causa dessa figura magnífica que eles escolheram para presidente. Nada como uma guerrinha pra esconder um monte de podres e desviar a atenção de outras coisas, né?

A sensação de esmagamento, pra nós, não é tão específica. Quer dizer: a gente pode até escolher o que vai nos esmagar, o que nos deixa certamente bem mais confortáveis do que os americanos. Assim, podemos até procurar quem vai ser esmagado da mesma forma, pra não ter a sensação de esmagamento solitário.

Já percebeu como basta trocar uma letrinha de uma palavra pra mudar todo o sentido? O solidário não é um solitário, mas pode acabar sozinho num cochilo do datilógrafo...

Mudei de pato a ganso, mas isso não tem a menor importância, porque o esmagamento solidário já não rendia mais suco. Essa coisa de palavra sempre me deixou intrigada e fascinada. E quando se trata de outra língua, então, fica mais divertido ainda.

Veja o espanhol, por exemplo. Todo mundo aqui jura de é igual ao português, mas não é bem assim. “Dos presuntos integrantes...” não é trecho de receita ou de descrição de um prato saboroso, embora um distraído possa acreditar que seja. E “el flamante presidente” não se refere a um presidente pegando fogo, nem a um super-herói que distribui rajadas de fogo e que ocupa algum cargo de presidente... E tem aquela frase lapidar que corre pelas redações brasileiras, de que o Peru dos americanos é a Turquia...

Existem palavras na língua portuguesa que parecem ter outro significado. Fronha, se alguém não sabe do que se trata, parece mais um palavrão do que um inocente e útil pedaço de pano. E uma coisa socialmente abominada como incesto pode ser interpretada como o ato de guardar alguma coisa no cesto...

Como alguém pode confessar, sem ficar envergonhado, que sofre de ardume em alguma parte do corpo? Ou que foi vítima de uma picadura de mosquito? Fora a coceira, e embora a construção esteja correta em ambos os casos, sempre vai ficar aquela incômoda sensação de ter falado alguma besteira sem tamanho...

setembro 22, 2002

Roupa suja é mesmo difícil. Às vezes tem-se muita, mas não é bom tocar no assunto. Particularmente, não gosto de ficar remoendo coisas que já passaram. Claro que ficam algumas mágoas, mas, na medida do possível, deixo tudo muito quieto, escondido num arquivo bem escondido do meu hd pessoal. Com o passar do tempo, a memória vai ficando muito cheia e o jeito é esvaziar arquivos pra ter mais espaço. Nessa hora, é bom esvaziar esse arquivo escondido. E colocar tudo no passado, sem voltar ao assunto.

Tenho a meu favor o fato de nunca querer ir muito fundo nas coisas. As coisas são como são - isso me basta. Por isso, talvez, eu não seja aquela repórter maravilhosa que uma época quis ser. Sempre faltava uma informação, alguma coisa pra compor o quadro completo da pauta. Não gosto de me meter em escândalos, não tenho a cara de pau necessária para perguntar coisas que sei que vão acabar em alguma sujeira. Isso, na vida pessoal, me foi muito útil muitas vezes. Na profissional, sempre atrapalhou.

Costumo me chamar de anta porque reconheço que sou. Sem nada que desabone os bichinhos - por sinal, são até bonitinhos -, sou daquelas pessoas crédulas, que sempre acham que os outros não têm maldade. Principalmente quando se refere aos meus contatos. Profissionalmente, isso enterra qualquer repórter. Fontes são muito boas para diversas coisas, mas é bom ter sempre em mente que elas também têm interesse em divulgar uma coisinha ou outra. Pessoalmente, às vezes dá certo. Quando não dá, fica aquela sensação horrível de "me fizeram de palhaço". Já experimentei essa sensação várias vezes e sei que provavelmente vou ter outras tantas. Não fico feliz em constatar isso. Mas aceito. Cada um é cada um, embora uns sejam mais do que os outros...

Pior é quando a gente mesma se faz de palhaça. Claro que só percebe bem depois, quando vê que passou um tempo se enganando. Aí o tombo é mais dolorido. Porque não tem ninguém pra por a culpa. Tem de assumir mesmo e se olhar no espelho com toda resignação que puder reunir. Desses choques, acho, a gente não se recupera nunca. Esconde, bem escondidinho, mas de vez em quando ele resolve dar um salto pra mostrar que ainda está ali. Fica preso no hd, não dá pra jogar fora.

Além de anta, acho que sou meio banana. Isso tem conserto, mas demora. Exige que se fique muito alerta para as coisas. E não sei se vou ter tempo pra me orgulhar de deixar de ser. Além do mais, bananice combina com uma certa idade. Velhinhas não têm de ser espertas. Podem ser inteligentes, divertidas, interessantes. Mas as pessoas sempre contam com uma certa bisonhice por parte delas - e já têm até aquele olhar de compaixão tipo "coitada, não tem mais idade pra perceber certas coisas..." Conto tanto com isso que já estou assumindo publicamente minha bananice.

Mas a tragédia, mesmo, é se impor um papel pela vida inteira e perceber que, mesmo que se queira, não dá mais pra sair dele. Aí fica uma briga interna das boas, dignas de entrar para um daqueles ultimate fighting da televisão. Não corre sangue, não à vista. Um lado quer mudar, o outro acha que não dá mais pra fazer isso e é pura perda de tempo tentar. E é uma briga do eu sozinho. Porque as outras pessoas ficam com cara de ponto de interrogação quando a gente não reage como elas esperavam. E dão bronca e brigam e protestam. Ninguém aceita.

E também, mudar pra quê? A estas alturas da vida, nem vale mais a pena. Mudar exige fôlego e muito energia... Acho, porém, que só a vontade de mudar já deixa a gente diferente. E, mesmo que algum tempo depois, se mude de idéia e se queira voltar atrás, não adianta mais. A bola já está rolando e o jogo está no meio. Não dá pra voltar atrás. Então, o jeito é sair catando o que ficou pra construir outra figura, o mais próximo possível daquilo que existia, mas não mais aquilo.

Em alguma aula do colegial - nem lembro mais em qual matéria - um professor tentava mostrar para a gente que um objeto já não é mais o mesmo um minuto depois de colocado num determinado lugar porque já tinha sofrido, nesse curto período, algum tipo de interferência do ambiente e da atmosfera. Na época, não entendi direito. Parecia mais aqueles delírios malucos de um professor totalmente aloprado. Hoje sei que ele estava coberto de razão. E só precisei recorrer à teoria do caos, não a da física, mas a da minha cabeça...

Se alguém entendeu, por favor, me explique. Porque eu mesma não entendi nada.

Por falar em tempo, acabo de olhar para a data e para o relógio: há 27 anos, dez minutos atrás, meu filho nascia...