agosto 24, 2002

Era uma ruazinha pequena, bem no meio do ladeirão da Paraíso. Há algumas décadas, só havia um prédio, bem na esquina que marcava o início ou o fim do único trecho plano do pedaço. Conhece o Paraíso? Não aquele que prometem pro andar de cima, mas o bairro, aquele que tem até estação de metrô. Ladeira acima, ladeira abaixo, as pernas ficam fortes e todo mundo tem de ter preparo físico se quiser se aventurar pra fora de casa. Então, num lugar que mais parece campo de treino para cabritos monteses, achar um trecho plano é quase um milagre. E era justamente naquele pedaço que a molecada se concentrava para brincar. Futebol, bandeira, taco, pião, tudo rolava naquele trecho. E bem no meio do quarteirão, ficava a casa onde minha família morava.

Taco era uma temeridade. Quem foi moleque nos anos 50/60 certamente conheceu esse jogo, acho que é uma variação de beisebol, mas não sou capaz de jurar. Os tacos eram pedaços de madeira cuidadosamente lixados pelos respectivos proprietários para ficarem com uma aparência aproximada de um remo mais estreito, achatado numa ponta e cilíndrico em outra. Mas isso era para os mais exigentes. Quase sempre era só um pedaço de madeira, longo e achatado. As bolas batidas às vezes iam longe e o pobre encarregado de resgatá-la tinha de se aventurar ladeira abaixo e depois voltar correndo, antes que o adversário marcasse os pontos que precisava para vencer a partida. E, nesses vôos, a bolinha atingia alvos inesperados. Mas não lembro de ninguém ter ido para o hospital por causa do jogo. Era um jogo masculino e a nós, meninas, cabia o papel de torcer ou ignorar.

Bandeira já tinha a participação de todos. A rua era dividida em dois territórios e a batalha se desenrolava geralmente no final da tarde, depois que todo mundo já tinha voltado da escola e feito a lição de casa. Terminava quando a primeira mãe botava a cabeça pra fora do portão e berrava o nome do(a) filho(a) anunciando o jantar. E era também a atividade favorita quando haviam festas de aniversário. Como todos eram convidados, a criançada toda se reunia. E por criançada entenda-se de todas as idades. E ninguém dava moleza. Foi num desses jogos noturnos que acabei pisando num caco de vidro - o gargalo de um litro de leite que havia escapado de alguma mão - e quase deixei o dedão do pé no meio dos paralelepípedos. O jogo, pra mim, acabou ali e ainda tive de ficar horas com o pé para cima, esperando que parasse de sangrar para minha mãe, branca de susto, fazer um providencial curativo. Um sacrifício imenso e doloroso pra quem não tinha nem chegado nos 10 anos de vida. Mas também não adiantou muito o sermão de minha mãe sobre o meu terrível hábito de andar descalça. Sapato é coisa que não suporto até hoje, mas agora prefiro as havaianas a andar descalça.

Claro que nem tudo era harmonia. E não foram poucas as vezes que as mães entravam no embrulho e acabavam brigando entre si, no meio da rua, cada uma defendendo a própria cria. As crianças, pouco depois, já estavam brincando juntas de novo. As mães, depois de um episódio como esse, geralmente ficavam um tempo sem se conversar... Minha mãe, não. Conhecia todo mundo, se relacionava bem com todos. Na janela da tinturaria, enquanto ela passava peça de roupa após peça de roupa, o desfile era interminável. Sempre aparecia alguém pra dar dois dedinhos de prosa - e alguns dedos eram realmente muito grandes e a conversa parecia que nunca terminava. Agora, lembrando daquela época, me parece que a janela da tinturaria era uma espécie de confessionário. Não lembro de ter ouvido coisa nessa linha, mas acho que até problemas sexuais foram sugeridos por lá. Sugeridos porque sexo não era alguma coisa pra ser falada assim, com naturalidade. Até pra comentar sobre alguém grávida as vozes baixavam, como se fosse alguma coisa muito séria uma mulher engravidar e ter filhos com o próprio marido.

Hoje tenho a impressão de que as mães não precisam brigar pra ficar sem se falar. Aliás, nem é preciso ser mãe pra ficar sem falar com os vizinhos. Aliás, ninguém quase conhece os vizinhos. A tal da vida moderna leva a isso, acho. A gente sai de casa para o trabalho e volta para casa e nem tem idéia de quem mora ao lado. E isso vale para casas e apartamentos, para bairros mais centrais e para os periféricos, sem distinção. Silêncio e desinteresse são bem democráticos, parece. O que antes funcionava, a turma do bairro, foi transferida para a turma do trabalho. Como a maioria dos adultos passa o dia fora de casa, o tal relacionamento social fica mesmo no trabalho. Mas a camaradagem entre vizinhos parece que está com os dias contados - se é que ainda tem alguns dias de vida...

Acho que boa parte dessa falta de conhecimento entre vizinhos vem mesmo do medo. O medo ganha cada vez mais espaço na vida da gente. Então, como posso confiar num vizinho que nem sei de onde vem e o que faz? Claro que se eu conversasse com ele, até saberia que se trata de um bom sujeito, bom cidadão, cumpridor de todos os deveres e com todos os impostos pagos em dia. Mas eu não converso - no máximo é bom dia, boa noite, um comentáriozinho besta sobre o calor ou sobre o frio ou sobre a chuva e olhe lá. Eu, não, vai que o vizinho me interprete mal, vai que ele me ache carente ou oferecida ou metida, ou tudo isso junto? Melhor ficar quieta e ficar bem contente com a minha tchurma, que pode me encher o saco de vez em quando, mas é composta por pessoas iguais a mim, com pensamentos semelhantes e atitudes idem...

Mas também não tenho saudades do tempo em que as mulheres paravam para os dedinhos de prosa com minha mãe. Aquele tempo se foi e, se voltasse, não teria sentido. Além disso, foi período de trabalho duro, de muitas broncas - filha caçula sempre toma na cabeça na hora de se apontar um culpado de alguma arte e nem sempre eu era a culpada - de descobertas absurdas. É estranho, mas não lembro de nenhuma passagem engraçada, daquelas que fazem a pessoa sorrir para o resto da vida quando se lembra do acontecido.

Foi meu período de infância. Só isso. Brinquei na rua, o que é mais do que muita criança pode dizer que fez, hoje em dia. Mas nada além. A adolescência foi bem mais gostosa...

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