agosto 27, 2002

Falei em medo e acabei me dando conta de que está aí, de fato, o grande sentimento deste século. Ele foi crescendo, se avolumando ao longo dos anos e chegou num ponto em que até ficar trancado em casa pode dar medo. A que ponto chegamos...

Não se trata de saudosismo, mas acho que as coisas não eram bem assim há uns 30 anos. Bom, naquele tempo haviam pessoas medrosas, mas não era como hoje, esse perigo implícito que ameaça um simples passeio perto de casa. Ou será que a gente, depois de uma certa idade, começa mesmo a ficar mais medrosa? Esta é uma possibilidade bem boa de ser estudada...

Uma velha amiga, por sinal já falecida, costumava contar que toda vez que esquecia alguma coisa pensava imediatamente que se tratava de um problema de idade e ria muito. Ela pertencia àquela rara categoria de pessoas que não tem problema com a idade e encarava tudo numa boa, sempre se divertindo muito. Além disso, a gente vive esquecendo coisas. Na maioria das vezes, são coisas sem importância. Mas o esquecer faz parte da rotina de todo mundo. Pode dar algum problema, mas raramente é coisa séria.

Outra amiga conta que a memória dela está ficando cada vez mais seletiva. Ela lembra de coisas que acha que interessa. O que não interessa é deletado no ato. E, claro, tem aquela que já vai avisando que nunca lembra de nada - nem de tomar memoriol todos os dias...

Pessoalmente, acho que é uma questão de espaço. Se a mente humana é igual a de um computador, com vários arquivos, não há gigabyte que aguente o tanto de informação que recebemos todos os dias depois de muitos anos sem reposição de placas. E infelizmente não se trata só de limpar. Entrou na memória, não sai mais. É a mesma coisa em relação às peças. Num computador, dá pra limpar tudo, reformatar o disco e recomeçar do zero. Com a gente, não. Deve ser o tal do elemento humano que atrapalha o sistema, aquele periférico que fica na frente do teclado...

Mas existem coisas que não precisariam ser lembradas e que deveriam vir com um botãozinho de delete pra ser acionado sempre que fosse preciso. Nas aventuras de Harry Potter me encantou uma tigela que o professor Dumbledore tem na sala dele, cheia de um líquido prateado parecido com mercúrio, chamada Pensieve. Quando alguém aproximava a cabeça da tigela, via um monte de imagens aparentemente desconexas. Funcionava assim: toda vez que Dumbledore sentia que estava com pensamentos demais na cabeça, ele tocava a testa com a varinha de condão e extraía esse líquido prateado, que eram os pensamentos dele. Jogava tudo na tigela e depois, com a cabeça mais leve, examinava as imagens com atenção e isenção. Fiquei maravilhada com a possibilidade de se colocar os pensamentos de forma a poder examiná-los com o distanciamento necessário para se chegar a qualquer conclusão. E mais entusiasmada ainda em imaginar que os pensamentos são prateados e fluidos. Os mágicos de Hogwarts têm lá seus problemas, mas também contam com recursos incríveis - afinal, são mágicos...

Historinhas de criança, dirão alguns. Que eu adoro. Sempre que possível, leio alguma coisa dessa literatura que dizem ser infanto-juvenil, mas que leva qualquer pessoa com um mínimo de imaginação para lugares incríveis e em situações deliciosas. Livros são, para mim, muito mais intensos do que o cinema ou a televisão. Mostram muito mais, deixam muito mais para a imaginação decidir. Romances são as maiores fontes de prazer que alguém pode ter. Uma hoa história, com começo, meio e fim bem amarrados, bem contados - isso vale noites sem dormir. O real tromba comigo todo santo dia no trabalho, não preciso dele pra tocar minha vidinha. Quem cobra realidade de cinema, teatro ou livro deve viver bem longe da Terra... Quero muita ficção, desvairada, criativa, intensa. Muito faz de conta, onde possa me refugiar de vez em quando, pra me isolar dos vários novos medos que andam me atormentando.

Os espanhóis costumam dizer que viver com medo é viver pela metade. Então, tem muita gente simplesmente deixando de viver nesse mundo do Senhor meu Deus. Desconfio que estou entrando para essa turma...

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